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Feliz Esperança em 2005 Categorias:
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Vi o circo “Verdiano” no bairro outro dia e pensei se eles não queriam dizer na verdade “Veridiano” sendo que não tem nada de verde no circo, mas circo sempre tem um nome assim meio esquisito como se fosse um nome de família estrangeira. Pode ser que “verdiano” conste nessa lista. O circo tem uma lona azul, dessas de caminhão, remendada com outra parda, que talvez um dia tenha sido alaranjada, quem sabe até alegre. Arranjaram um terreno baldio para colocá-lo. Não precisa ser grande não, até porque o único terreno grande disponível no bairro é o campinho de futebol. Amarrotado entre uma construção abandonada e um morrinho onde uma casinha torta de madeira fica elegantemente encarapitada, o circo tem ares de novidade. Não tem letreiro bonito. Se tivesse “s” no nome, certamente seria desses “s”s escritos ao contrário. Mas a criançada sente cheiro de brincadeira quando olha a lona, as arquibancadas pela metade no chão de terra.

Andando um pouco mais para frente, na mesma rua movimentada, a gente passa pela Sorveteria Jaspe, um primor de limpeza. Seria a própria fran-chise estrangeira do bairro, de tão limpa, e se não tivesse clones semelhantes com outros nomes e outros donos esperançosos em várias esquinas. As cadeiras de plástico se espalham dentro do cômodo caiado, no chão de vermelhão, cuidadosamente encerado, e do lado de fora, na calçada sempre varrida. O sorvete é vendido em balança de açougue, as vasilhinhas não são térmicas. Mas, nas tardes quentes, donas de casa e crianças se divertem, levando para casa os sabores açucarados da Jaspe. Com um real compra-se um monte, o que faz a festa de muita gente, inclusive a minha algumas vezes.

Depois da Jaspe tem a Peixaria Jacaré. Não se pode chamar bem de um comércio estabelecido. É só uma mesa coberta de flandres no quintal de alguém. Um letreiro borrado determina a função da mesa: algumas vezes por semana ela fica cheia de uns peixes pescados nos igarapés do fundão do bairro ou até no rio Madeira quando os pescadores dão sorte e é tempo de piracema. Já vi os fulanos — os peixes, não os pescadores — de barriga pra cima, empilhados na mesa, sendo vendidos por um garoto magrinho sem camisa. Peixes bigodudos, destes que em minha terra, Minas, seriam considerados até iguaria, mas aqui nesta Amazônia rica de espécies e sabores peixíferos maravilhosos são uma espécie de ralé dos peixes. Se houvesse um sistema hindu de casta de peixes eles seriam os párias, “come-bosta”, como tem gente que chama. Mesmo assim a peixaria Jacaré abre com orgulho as vendas na chegada dos pescadores e não tem um dia que não consegue vender tudo. A mesa fica vazia, para ser lavada depois até brilhar pelo garoto magrinho esperando o outro dia, de vender mais bigodudos “come-bosta” para sustentar a família, da qual eu pensaria que ele faz parte na categoria de filho, mas aqui, nesta promiscuidade vasta e erotização precoce, não se sabe. Ele pode ser um jovenzinho juntado com outra adolescente tentando corajosamente sustentar o filho pequeno, ou até coisas piores que nem gosto de pensar, constrangedoras e tristes, mas não impossíveis.

Entre o Circo Verdiano, a Sorveteria Jaspe e a Peixaria Jacaré tem uma verdade brasileira escrita em suor e pó. Somos um povo de esperança. Não importa se o perfil social do bairro Nacional onde moro seja um dos piores do Brasil. Não importa se as famílias são pedaços apenas, se as escolas arremedam educar, se os homens e mulheres arremedam trabalhar para um arremedo de dinheiro. Não importa se somos “inútel”, se nosso voto é comprado, nem se o Lula chegou lá ou não. No dia-a-dia a vizinha do lado tem sempre um sorriso de cumplicidade para a outra, as crianças sempre brincam de bola no asfalto ou no campinho de barro, como se fossem o Ronaldinho no Maracanã. Afinal o próprio Ronaldinho um dia sonhou ser Romário, brigando franzino numa pelada em seu bairrinho bentinho pobre do Rio. Não importa se o pão manual da padaria tem um pouco de fubá ou se o peixe da Jacaré não é dos melhores. Sabemos construir um país com uma mistura de dor e esperança — mais esperança que dor afinal de contas — do mesmo jeito que construímos nossos negócios de fundo de quintal e nossas vilas. E quem disser o contrário estará mentindo ou não conhece o Brasil.

Feliz Ano-Novo e feliz esperança brasileira!

Texto publicado na edição de dez/jan 2004 da revista Ultimato