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O Indio Crucificado no domingo de Páscoa Categorias:
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Não se sabe exatamente quantos índios e garimpeiros já foram mortos neste conflito. Mantiveram Marcelo Cinta-Larga amarrado à cruz na praça durante todo o domingo e à noite tentaram colocar fogo no seu corpo. Depois de muito álcool e muitas tentativas de queimá-lo vivo, os garimpeiros finalmente desistiram e libertaram Marcelo.
Quem conhece os Cinta-Larga admira sua coragem guerreira e sua força que não se dobra. Mas o que seria uma qualidade admirável em qualquer pessoa, nos índios se torna aos olhos de todos um sinal de perigo, uma fumaça que indica fogo. Índio que é bom é índio calado, passivo, índio que não fala, que se conforma em ficar pelado correndo nos matos, que não liga para o que fazem com suas terras ou o subsolo de suas terras.

O Pio é o oposto do que se espera ver num guerreiro indígena. Ele é baixo, gordo, tem um olho um pouco vesgo, um pouco fechado. Fala num sotaque forte compassado, não transparece emoção a não ser um cansaço secular, um cansaço Cinta-Larga à respeito do mundo “civilizado”. Pio agora tenta gerenciar um enorme conflito nas suas terras. Ele é o chefe principal, por herança sangüínea, da tribo Cinta-Larga. Há alguns anos ele e sua esposa Rute fizeram um curso conosco. Na época combinavam duas coisas, “sumir” um pouco dos olhos dos garimpeiros da região e aprender mais como ser cristão. Isto foi há dois anos e a situação ainda estava sob controle. Hoje a reserva indígena é uma espécie de barril de pólvora explodindo por todos os lados.

Quando me visitou na semana passada, Pio se sentou e explicou que veio depôr na justiça do estado. Disse que foi bem entendido e tratado com respeito. Mas o mesmo estado que ouviu Pio depôr à respeito da morte de alguns garimpeiros neste abril de 2004, assassinou noventa por cento da nação Cinta-Larga há pouco mais de 30 anos atrás. Pio sabe. Quando garoto ele viu todos os seus adultos morrerem. Brincava na mata e quando voltou os corpos estavam no chão, alguns ainda se mexendo num resto de vida frenética. Morreram envenenados por um açúcar com cianureto presenteado por brancos. Pio sem mãe, sem pai, sem avô, sem tio, juntou suas flechas e as crianças que restaram e entrou na mata para sobreviver, já sendo o chefe sábio que é hoje aos onze anos apenas. No curso há dois anos, confessou num pranto convulsivo o perdão a todos estes poderes que mataram sua gente.

Ninguém jamais veio à capital depôr por este crime, genocídio era parte do cotidiano deste oeste selvagem. Pio foi crescendo, se tornou chefe dos poucos Cinta-Larga que restaram. Me explicou ontem que o garimpo já existia na década de setenta, não é novo, só o número de exploradores aumentou. Todas as vezes que William Boner aparece no Jornal Nacional com seu sorriso plástico dizendo que a reserva Cinta-Larga abriga a maior reserva de diamantes do país com a displicência e o desinteresse de quem fala do novo affair da Débora Secco, o número de garimpeiros dobra. Ah eu queria tanto processar o Roberto Marinho por crimes contra a humanidade, como fizeram os aliados com aqueles nazistas em Nuremberg, mas parece que ninguém mais vê o horror que sua televisão produz.

Pio e Rute não falaram muito, se sentaram na minha sala de luz tímida, como se esperassem um milagre de mim que eu mesma não conseguia esperar. Era tarde da noite, estavam exaustos e com medo. Rute me disse que sabe que Marcelo foi salvo pela oração. Olhando para eles pensei nas centenas de crianças Cinta-Larga, que não se sabem nem guerreiras, nem assassinas e correm semi-nuas pelos campos da reserva. Pensei nas mulheres que conheço quase todas não falam português, não tem a consciência do poder do diamante, só querem paz para não perderem seus maridos e seus filhos. Pensei no Brasil tanta riqueza em tantos lugares, as mesmas pedras presentes na reserva estarão presentes fora dela, mas ninguém se importa, só queremos tirar o que está lá dentro porque nos sentimos privados do pouco que restou para aquele povo que já foi dono de quase tudo por aqui.

Como disse uma vez um militar alta-patente os índios para nós não passam de um obstáculo entre nós e as riquezas do país. O que representa Pio e sua gente nos dias de hoje? Nada, um grupo insignificante, pouco mais de mil pessoas se debatendo para saber quem são num mundo que não os compreende nem os permite existir.
Pio não incentivou assassinatos, não tem vingança no coração apenas um grande cansaço de quem sabe que está sempre em desvantagem, de quem tenta lutar pela paz, mas tem dificuldade de conter seus guerreiros que brigam pela posse da terra que é deles por direito de mais de 500 anos de uso capeão.

Minha oração agora é, até quando? O que faremos por eles? Como conter o apetite garimpeiro, a sanha assassina, o brilho das pedras? Como conter as falácias diabólicas da mídia, o tripudiar dos demônios do diamante sobre os homens e mulheres, a paixão Cinta-Larga em defender seus direitos diante do inevitável? A quem podemos clamar, nós, o Pio, sua gente?

Senhor, ajude o Brasil a salvar seus índios, a salvar-se a si mesmo…