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Chega de Mortes Categorias:
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Nasci em Porto Velho, capital do estado de Rondônia, onde cresci sob os cuidados maternos como a grande maioria de meus contemporâneos.

Porém, mais que brasileiro sou cristão e como tal não posso manter-me indiferente frente a injustiça e a iminência de morte que paira sobre um povo inteiro. Tenho acompanhado o desenrolar dos fatos ocorridos na reserva dos índios Cinta Larga, especificamente no tocante à morte de vários garimpeiros dentro do Posto Indígena do Roosevelt.

Infelizmente não há nada que possa ser feito para aplacar a dor dos parentes das vítimas. As suas mortes são fatos consumados e às suas famílias só posso oferecer minhas mais sinceras condolências. O que ali ocorreu é de causar horror a qualquer um. Porém, mesmo diante do sentimento de indignação provocada diante da cena exposta pelos órgãos de imprensa na qual via-se os corpos sendo transportados das aldeias até a cidade onde os parentes puderam velar os mortos. Mesmo diante dessa cena de horror, não podemos nos deixar ser tomados pela ira e investir, ou permitir que assim se faça, contra toda aquela sociedade indígena milenar.

Eu mesmo já trabalhei com os Cinta Larga, chegando a morar entre eles por mais de seis anos. Durante o tempo em que estive com eles trabalhei em várias de suas aldeias, inclusive na aldeia do Roosevelt, palco atual desses terríveis eventos. Jamais, em todo o tempo no qual estive entre eles fui agredido, nem eu e nem minha esposa ou algum dos meus dois filhos que passaram os primeiros anos, desde o seu nascimento entre eles.

Ao contrário do que se possa dizer a respeito dos Cinta Larga o que encontrei ali foi um povo carinhoso, trabalhador e paciente. Lembro-me inclusive de quantas vezes eles cuidavam de nós como a filhos, e sem falar no quanto sentiam-se agredidos quando disciplinávamos nossos filhos. Obviamente que não estou tentando pintar um quadro escapista, ou mesmo insinuando que os índios são seres angelicais desprovidos de qualquer sentimento negativo. Não! Os Cinta Larga são como qualquer ser humano e como tal sujeitos às mesmas paixões que qualquer um: amor, ganância, vaidade, ódio… este último, e tão somente ele tão frisado por nossos jornais. Mas eles são mais do que isso, assim como todos nós. Eles são seres humanos normais. É incrível que isso precise ser dito ainda nos dias de hoje.

Ouvindo as conversas ou assistindo ao noticiário me sinto horrorizado frente à enxurrada de informações sensacionalistas que vêm sendo ditas em relação a eles. Um repórter chegou a dizer que já passam de mil os possíveis mortos no garimpo. Tais notícias são completamente irreais e irresponsáveis e apenas tendem a fazer crescer o ódio pelos Cinta Larga. Ódio indevido e injusto.

É justo condenarmos uma etnia inteira pelo crime praticado por alguns de seus integrantes? É justo caluniarmos o sobrenome dos jovens, das crianças, das mulheres, dos idosos e de muitos guerreiros de um grupo étnico porque alguns integrantes daquela cultura agiram criminosamente? É justo julgarmos, condenarmos e executarmos os parentes pelo crime do pai de família. Ora, isso só pode ser concebido no período conturbado que antecedeu a reforma religiosa na idade média.

Mas o Estado já se dissociou da Igreja e o próprio direito evoluiu chegando a dizer inclusive que até o réu tem direitos. O que é deveras justo! O noticiário tendencioso e a morosidade de nossa justiça, juntos poderão ser responsáveis pela continuação de um processo do genocídio iniciado na década de 60 por essa mesma sociedade que agora os julga e condena.

Aproximadamente 80% da população Cinta Larga foi cruelmente morta, e isso documentado em jornais da época. O remanescente do povo até hoje busca renascer das cinzas como uma fênix amazônica. Justamente no momento em que parecia que eles afinal voltariam a crescer e se firmar de novo como um povo forte surge o garimpo em suas terras e com ele todos os males que normalmente acompanham esse tipo de atividade: prostituição, drogas, roubos, sonegação, evasão de divisas e morte. O que tem ocorrido ali é um quadro típico da realidade histórica do garimpo em qualquer lugar do mundo. Mas um bode expiatório precisa ser encontrado, nesse caso escolheram um povo inteiro, não ao acaso diria, pois uma vez exterminado seria removida a pedra do caminho para que poderosos se assenhoreassem de suas terras. Chega de mortes! De garimpeiros e de índios.

O Brasil tem condições de fazer parar esse processo enquanto ainda há tempo. Seria inclusive uma forma de se redimir por todo o mal feito ao Cinta Larga desde a década de 60. Esse povo já sofreu muito. Não se calem frente ao noticiário comprado, e nem diante da manipulação dos poderosos. Falemos aos ventos e às autoridades exigindo que a vida dos Cinta Larga seja preservada.

Cledson C. Lima.