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Porque eu nunca ganharia o prêmio Nobel… Categorias:
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Depois do assassinato da freira Doroty Stang no Pará, alguns amigos me perguntaram se nossos missionários aqui também corriam risco de serem mortos, e se o tipo de trabalho que fazemos na Amazônia é parecido com o dela. Tenho que dizer que não, ela não trabalhava conosco, e que o trabalho que fazemos não tem conotação política por isto corremos sempre menos risco. Mas ter que responder assim me enche de vergonha. Não, nós não denunciamos o trabalho escravo, não abraçamos a causa dos sem-terra, ou dos índios com terra mas sem cidadania.

No ano passado uma organização queria que o prêmio Nobel da Paz fosse distribuído entre mil mulheres militantes do mundo inteiro. Meu primeiro pensamento foi indicar uma amiga católica que tenho aqui na cidade, militante do movimento negro e de mais um monte de outros movimentos. Apesar de trabalhar há muitos anos com problemas sociais, sei que nem eu e nem a maioria dos evangélicos que conheço jamais ganhariam um prêmio como este, e nem seremos assassinados no mato por um grupo de ruralistas furiosos.

Nosso trabalho é nu de implicações políticas. Por anos nos dedicamos aos índios da Amazônia, sem nos importarmos com questões práticas da terra, com os abusos da legislação indígena. Presenciamos violações terríveis dos direitos humanos pelo Governo, choramos com índios incapacitados de tomar as rédeas de seu destino, brigamos com aqueles que se embriagam de interesses escusos, mas só. Nosso choro não é prático. Ou em alguns raros casos, aplicamos nossas iniciativas ao micro-cosmo social da igreja que não chega a ter grandes repercussões regionais ou nacionais.

Já me atrevi a fazer política para candidatos que conheci e sabia que tinham seriedade e competência suficiente para o cargo a que estavam se propondo, mas sei que fui mal interpretada. “Mexer com política” sempre cheira a ambição, a ilegalidade e te coloca com um pé na lama aos olhos de alguns evangélicos. Preferem se isentar de apoiar radicalmente algum para depois poder tirar vantagem desta “neutralidade” com qualquer um que se eleja.

Mas meu conceito de política, mesmo quando apoiei meu candidato de todo coração também era equivocado. Pensei que o elegeria para que ele trabalhasse por mim as mudanças sociais que sonho ver no Brasil. Errei. Mudanças não são os políticos que realizarão. Como estas candidatas ao prêmio Nobel descalço eu deveria estar realizando as mudanças eu mesma, entendendo que é através de mobilização social, engajamento com causas reais, macro ou micro-cósmicas é que vamos mudar o Brasil e o mundo.

Não sei porquê desconecto o “servir a Deus” do servir aos homens, e acho que meu trabalho principal é fazer com que almas sem corpos se salvem. Almas sem corpos freqüentam igrejas com paredes graças ao meu trabalho e de muitos que trabalham comigo, para quê? Suas barrigas ainda estão vazias, os olhos ainda estão baços, os sexos ainda trazem as marcas das DSTês, as crianças ainda estão em falta de futuro.

Os possíveis candidatos ao prêmio Nobel, ou a um assassinato decente, devem ter pensamento integrado, devem reconhecer que almas sem corpos não subsistem e devem lutar para que estes corpos alcançem dignidade, cura, cidadania.

Soube de uma crente da assembléia de Deus que orou e Deus a orientou na caça de fazendeiros escravagistas no sul do Pará. Em pleno século XX eles mantinham escravos para trabalho braçal e entre eles estava o filho da senhora. Ela descobriu e denunciou em meses de investigação, orações, risco de vida. Foi reconhecida na Inglaterra e ganhou até prêmio. No Brasil não mereceu mais que um quarto de página da VEJA. Acho que não apareceu em nenhuma revistas evangélica tampouco. Crente estranha ela. Se fosse apenas uma crente comum como eu, teria orado, chorado e só.

Outro problema nosso é que nossos impérios são nossos. Temos igrejas em bairros pobres, que me lembram as mesquitas de Cairo. Construir mesquitas são a forma que muçulmanos ricos agradam Alá. Nós também crentes-islâmicos agradamos a Deus com templos. Lá ficam nossos templos em favelas e guetos sub-humanos fechados durante a semana. Não existem nestes guetos espaço para lazer, para educação, para nada que eleve a condição humana da lama em que mergulha. Mas o templo está lá, sub-aproveitado, monumento a indiferença de Deus pela humanidade. Deus é crente, e nos vê quando estamos na igreja, se preocupa com nossa religião não com nossa barriga vazia, ou nossa marginalização social.

Os candidatos ao prêmio Nobel no entanto saberiam que se construíssem algo teria que ser comunitário, espaço aberto, humano, ativo sete dias por semana reconstruindo a humanidade, porquê se Deus nos ama mesmo ele nos ama inteiros.

Triste constatação esta que fiz. A maioria dos evangélicos, inclusive eu, somos socialmente inoperantes, destituídos de uma real consciência de nossa responsabilidade humana. Que nossos amigos católicos nos representem em todo glamour de seus pés descalços, mãos cansadas, e aventais sujos, e tristemente também bocas cheias de terra.

Bráulia Inês Ribeiro