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Queimados no mesmo Moquém Categorias:
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Eu ia subindo da minha casa para a sala de aula, num tremendo sol de inverno, (porquê aqui, inverno faz muito sol), pulando entre as poças de água das chuvas abundantes. Eram apenas 9 horas e minha cabeça já estava em fogo, pelo sol, mas também pensando no que eu teria que falar durantes as próximas três horas de aula.. Nunca planejo com exaustão o que vou ensinar, me guio mais por uma intuição que creio que é Deus que coloca, fico ali tentando surfar na intuição momentos antes para juntar os pensamentos numa lógica possível.

Estava andando com este redemoinho espírito-intelectual dentro de mim quando vi o moquém. Moquém para quem não sabe é uma armação feita de varas verdes com fogo embaixo onde se coloca carne de caça para assar com fumaça. Na verdade é um híbrido de defumador com churrasqueira, muito usado pelos indígenas brasileiros. Enquanto o moquém fica aceso as carnes se conservam boas para comer por muitos dias, a fumaça evitando que as varejeiras pousem, o calor impedindo que as partes mais grossas apodreçam, mantendo-as num processo de assamento lento.

O moquém havia sido feito na quinta-feira passada para um culto especial. Uma de nossas equipes tem enfrentado problemas sérios com o governo e foi oficialmente proibida de atuar em área. Enfrentamos uma batalha longa, um verdadeiro moquém de intolerância, preconceito religioso e descaso pelos índios. A equipe além de se gastar em anos de compromisso e amor com aqueles seres humanos no meio da selva, adotando seu estilo de vida, sua nudez, sua comida, para fazer Jesus se encarnar no meio deles, tem que enfrentar a perseguição dos órgãos governamentais, o preconceito e o desrespeito de todos por seu trabalho árduo, da comunidade religiosa que as vezes não entende nossa estratégia de entrega ao povo e identificação material, e até dos cientistas da área. Apesar da excelência acadêmica que os lingüistas e etnógrafos (nossos e de outras missões) apresentam, suas propostas e estudos não são consideradas válidas, ou dignas de menção por causa de sua ideologia. Um lingüista ou antropólogo pode ser tudo, pedófilo, espírita, corrupto com verbas de pesquisa, o diabo a quatro. Só não pode ser crente. Se ele professar qualquer ideologia cristã, ou até uma simples simpatia aos cristãos e missionários, pronto, estará banido para sempre dos meio acadêmicos brasileiros. Pois esta é a realidade desta equipe, se debatendo agora para continuar na mata.

Resolvemos fazer uma reunião especial, uma celebração da ceia do Senhor em que iríamos, comer mandioca ralada, carne moqueada na beira do fogo, e tomar um caldo de carne e vísceras sem sal, nos fazendo índios, inda que por uma só noite de lua cheia, tentando sentir na nossa boca, o gosto de suas bocas que imploram por liberdade em Cristo e legitimidade social. Cada momento daquela celebração seria uma oração ao Senhor, que os conhece e nos conhece, e que deseja continuar se revelando a eles, abertamente, no meio da mata, tanto quanto a nós aqui na cidade. O culto promovia o encontro de dois mundos, sendo que o mundo indígena seria uma imanescência virtual, permeando tudo, mas no entanto ausente.

Tivemos uma bela noite, com os cantos indígenas gravados, soltos no ar o tempo todo, nossos missionários e alunos tomados por um amor quase reverente pelos povos das matas. Vieram visitantes da cidade celebrar a ceia conosco, alguns se sentiram estranhos naquele salão, (é, infelizmente não pudemos fazer o culto ao ar livre, como na aldeia devido à malária aqui da região nesta época de inverno), sem cadeiras e sem luz, um pretenso fogo (de velas) no meio das palhas de banana, a carne do moquém e o caldo de vísceras servidos em pratinhos de barro compartilhados. Outros, me disseram depois, sentiram profundamente a presença de Deus, entendendo-O em sua forma multi-cultural e multi-humana maravilhosa. Dançamos e cantamos ao som das músicas dos cristãos Suruwahá, em mono-tom, os rapazes, enfeitados de palha de palmeira, lutaram a dança do macaco barrigudo reproduzindo a luta que estamos travando no mundo espiritual.

Acabou-se o culto, foi-se a noite de lua, ficou o moquém. Depois de alguns dias no domingo, nos reunimos de novo com os alunos. Louvamos brasileiramente desta vez, por longas horas. Reinaldo pregou também por longas horas, com seu jeito engraçado de dizer coisas profundas. Os alunos mais novos recém chegados do pecado alguns, foram se quebrantando diante de Deus, desejando santidade, se comprometendo com uma vida de pureza moral, mental e física. Esperamos que também, e principalmente, pureza de motivações para as decisões que vão tomar na vida à partir de agora.

Naquele dia na manhã quando passei pelo moquém, pude observar os restos deste quebrantamento. Pedaços de revistas que foram queimadas, fotos, cartazes, objetos que lembravam antigas namoradas ou amores proibidos. Tudo o que significava vínculos com uma vida passada de impureza foi queimado pelos alunos no mesmo moquém em que algumas noites atrás assaram-se as carnes e vísceras da nossa ceia indígena.
Não pensamos nestas duas entregas como sendo a mesma coisa, mas olhando o moquém, com seus restos diversos, percebi que Deus obviamente não faz diferença entre elas. Nossa vida em missões é uma vida de sacrifício e entrega diária do pecado e da impureza de não estar no centro de Sua vontade.

Bráulia Ribeiro