A Cidade Genital e a Graça Categorias:
Descemos a estrada que termina em barranco na beira do rio Negro. Estávamos indo para Manacapuru, cidadezinha do outro lado do vértice da união entre o Negro e o Solimões. A balsa enferrujada carrega muitos caminhões e ônibus e um número ainda maior de pedestres levando isopores de água e picolés, bicicletas, fardos de farinha. Os cabocos amazonenses me comovem com sua tenacidade. As mulheres que se espremem na fila, vestidas em shortinhos e tops minúsculos de lycra revelam gorduras fora do lugar, grandes barrigas pensas em cima da cintura, o suor crescendo indelicadamente nas partes impensáveis. Os homens também usam combinações coloridas de calções e camisetas de times de futebol de tecido sintético contrastando com sua pele escura, marcada de picadas de insetos, um couro de réptil reluzente.
Procuro assento e o único prazer que antevejo para meu dia é olhar o rio com sua negritude e majestosa embaixo de nós. Deixar Manaus também foi bom, o caos o calor, a ilogi-cidade. Gostei daqui no passado, mas como uma criança linda que se torna em adulto feio, Manaus ficou torta, suja, uma cidade-genitália procurando sua razão de ser em rebolados sensuais. Os crentes antes escassos agora estão em todo lugar, possuindo a terra com templos fálicos.
Vou traduzir um casal de americanos em um templo pentecostal em Manacapuru. Conheço o casal apenas por sua história, um adultério perdoado que se tornou em testemunho de graça. A mulher loira, cáqui e chapéu se senta ao meu lado. Tédio e cansaço me impedem de levar a conversa à fundo. O outro barranco chega, saímos da balsa, prosseguimos numa van.
Chega a noite e lá vamos nós fantasiados de pentecostais para a igreja. Com praxe em missões chegamos com grandes sorrisos e mãos estendidas apertando todos, pretendendo admiração e respeito. Minha sandália doada aperta o pé, o vestido fora de moda combina com o descombinar de tudo com as flores kitsch e as figuras e letras que cobrem todas as paredes.
Começa o louvor, um rapaz com trejeitos homossexuais assume o púlpito e canta. Canta músicas da moda evangélica, odes às minhas emoções saciadas por um Deus de amor quase erótico pela humanidade. Na segunda canção pra minha surpresa meu tédio se dissolve. Comecei a sentí-Lo perto de mim, o Deus bailarino me convidando pra dançar na lindeza daquela igreja caboca. Vejo o rapaz à frente e seu sorriso resgatado, pleno de amor e graça e os crentes a deixá-lo guiar-lhes na mais improvável das construções sociais: prefeito, o pastor nascido na barranqueira, estudado em Manaus, a universitária, o ex-ladrão, a ex-rameira, as donas de casa, as mulheres da seringa e da sorva dos beiradões, todos ali cantam juntos o Zaqueu.
Os americanos começam, eu como a voz brasileira da mulher, grito na igreja: – Eu cometi o pecado do adultério… O pastor como a voz do marido traído enfileira ensinos sobre o poder da graça e do amor para reconstruir famílias… As diferenças culturais se dissolvem na realidade de um drama familiar repetido desde que o mundo é mundo. As dores da família, a cornisse do marido tentado a mostrar a macheza mas cedendo à graça de Deus para continuar amando-a, cobrindo-a em sua vergonha, finalmente aprendendo a ser homem… Tudo isto era novo e velho ao mesmo tempo. É a graça sai da cabeça e se faz carne e osso na história de alguém.
Saímos dali para comer peixe, ouvindo as risadas dos crentes amazonenses. Na manhã seguinte volta a troupe para uma Manaus que já não me pareceu tão impossível. Os próprios templos faraônicos agora eram ainda fúteis, mas também abrigo de perdão, esperança e vida. Tudo o que a cidade-genital precisa é de amor… Em meus novos olhos as pessoas todas tinham uma beleza única, cada ruga contando uma história de amor. O sol já não castigava tanto, os suores das gentes não eram mais tão deselegantes e a chuva que caía abundante vinha direto dos olhos do Pai do Céu.
Publicado originalmente em www.ultimato.com.br