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Por Márcia Suzuki*

Para nós que trabalhamos com o povo Suruwahá por mais de 20 anos, como organização, pela Jocum – e várias equipes passaram pelo povo Suruwahá, não fomos só o Suzuki e eu -, quarentena não é uma coisa nova pra gente não.

Nós sabíamos do risco que existia de a gente levar uma gripe, um vírus qualquer, inadvertidamente, e sem querer acabar matando muita gente. Então nós sempre tomamos o cuidado de guardar quarentena antes de entrar na tribo Suruwahá. Nós tínhamos uma casinha no meio do mato. Um barraquinho de madeira, de 6 por 8 se não me engano, coberto de palha, no meio da floresta. Os vizinhos mais próximos estavam a dias e dias de barco. Ficava ainda alguns dias de caminhada de distância da aldeia. Então a gente não tinha contato com ninguém. Era só a gente naquela casinha de madeira, guardando aqueles dias de quarentena, esperando que não tivéssemos nenhuma doença, para podermos começar a caminhada e passar o tempo com os Suruwahá. Esse era o cuidado que a gente tinha para protegê-los.

Se pode ser chato estar numa quarentena com luz, água, internet, tudo que eu preciso, até mesmo se eu precisar de comida eu posso ligar e alguém vem entregar comida aqui na minha casa, imagina estar em quarentena no meio da floresta, onde seus únicos vizinhos são as onças, os povos do mato e as cobras, onde você não tem água, onde você não tem luz, não tem água encanada, não tem energia. Nós não tínhamos nem rádio para comunicar naquela época, era só a gente no meio do mato, naquela casinha, e Deus. Suzuki e eu ficamos lá algumas vezes,  se algum de nós não estava se sentindo bem, então a gente tinha que ficar um mês, chegamos a ficar uma vez, dois meses em quarentena, naquela casa no meio do mato.

O que que a gente fazia no nosso tempo? Com a gente usava esse tempo? Eu posso falar sem medo de exagerar, que aqueles dias, aquelas semanas que guardamos quarentena no meio da floresta, foram talvez o tempo de maior apredizagem como casal, como equipe, era o tempo que a gente tinha para ler a bíblia, para ler livros, livros que nos inspiraram e para conversar. E naquelas longas conversas na paz da floresta a gente tinha a oportunidade de ministrar uns aos outros.

Foram naqueles momentos que a gente estava ali orando, conversando por horas seguidas, que Deus nos revelou coisas novas, foi nos abrindo a visão e nos fazendo entender a realidade da missão, a realidade de um evangelho vivido de maneira plena, de maneira radical, foi ali que a gente teve revelação sobre o significado de Babel, da diversidade de Deus e como isso se aplicava na nossa vida missionária, foi ali que a gente entendeu a metáfora existencial do povo Suruwahá sobre o suicídio e a relação disso com a morte de Jesus na cruz, foi ali que a gente entendeu que a missão não pode ser triunfalista. A gente começou a enxergar a vida dos apóstolos, a renúncia, o sofrimento, como era ser realmente um servo radical, um cristão, um missionário radical, e então a gente perdeu aquelas ilusões de triufalismo que a gente tinha construído na igreja durante muito tempo. Deus nos fortaleceu e nos preparou.

Naquele tempo não tínhamos ideia do queiríamos enfrentar no Brasil com relação ao infanticídio, que iríamos começar a ATINI, que iríamos lutar no congresso, e que isso mexeria com o país inteiro. Isso nem estava na nossa cabeça, lutar por uma causa de direitos humanos como é a questão do infanticídio nas tribos indígenas. Mas Deus nos preparou naqueles dias de quarentena, assim como também para um dia deixar nosso país e ser exilado numa pátria distante.

Então gente, quero dizer para vocês: aproveitem a sua quarentena, não fiqje nesse tempo, chateado e se lamentando que não pode isso, não pode aquilo, aproveita! Você tem tempo agora para ler a bíblia, para ler livros que edificam, para orar, para conversar com a sua família e para processar o que Deus está te falando e Deus vai te revelar coisas lindas e coisas incríveis que podem mudar a sua vida a partir desse momento. Quarentena é uma grande oportunidade, não perca essa oportunidade.

*Márcia Suzuki é pioneira em Jocum, linguista, ativista pela causa indígena, morando atualmente nos Estados Unidos