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Nosso Encontro com o Dom Categorias:
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Sentamos na sala de espera depois de atravessar duas portas pesadíssimas, uma de grade, outra de madeira com ferrolhos do século passado. Tudo simples, paredes caiadas, mas com aquele quê de arquitetura barroca, aquele lastro de arte pré-renascentista, renascentista, gótica, neo-clássica, contemporânea e por aí vai, ao qual não estamos acostumados em nossa artisticamente pobre cultura protestante.

Sentamos num sofá grande puído do tempo dos muitos traseiros que se sentaram ali na mesma expectativa. Como seria o dom? Seria um dom ou um Dom? Muitos de vocês leitores talvez já conheçam dons, mas para mim era a primeira vez. Fui católica na infância, era freqüentadora de missas por imposição da minha família, fiz catecismo com as freirinhas. E minha sensação era sempre a mesma, seja na igreja simples que o padre construiu no bairro de favela onde morávamos, com um cristo negro meio tosco que nos olhava míope de uma cruz na lateral da nave, ou no convento onde ia para o catecismo, com um quintal grande de árvores ancestrais, as casinhas das freiras caiadas no fundo, a sala de catecismo nua cheia de carteiras velhas. Minha sensação sempre era a de estar em um lugar onde na verdade não deveria estar. Era a de estar xeretando nos afazeres de um Deus que não me conhecia e não me queria por perto, mas que era íntimo dos padres belgas e de suas freiras de mãos frias.

Me lembrei desta infância distante, sentada ali esperando o Dom. Outros expectantes de Dom estavam sentados ao nosso lado, eu estava ali com meu marido o que me dava uma segurança e de certa forma segurava a corda para que eu não caísse de vez no fosso profundo das recordações da infância. Os outros eram os mais diferente tipos. Um casal que não se falava e parecia afoito por algum tipo de resposta ou informação oculta no escritório no dom. Um homem meio gordo, com uma expressão de desânimo, uma mulher solícita de verde que sorria de vez em quando.

As secretárias na sala vizinha conversavam sem parar conversas frívolas num burburinho que não combinava com o clima meditativo em que eu queria entrar. Afinal iríamos falar com o Dom, rompendo uma barreira de quase quinhentos anos desde a reforma protestante, tentando construir uma ponte sobre as ruínas há muito desaparecidas, achando pontos de referência mútuos de entre as estranhezas dos dois mundos. Era um momento que exigia reflexão e respeito. As secretárias no entanto totalmente indiferentes a nossa compenetração se atarefavam com rotinas, água mineral que se acabou copo descartável em falta, outros esperadores de dom que entravam e saíam.

Tentei ler alguma das muitas revistas espalhadas na mesinha de frente ao sofá. Algumas “normais”, Istoé, Época, Caras não, graças a Deus, o que me deu uma sensação de respeito maior ainda pelo dom. Não tem Caras na sala de espera dele não, já era um elogio que eu podia espalhar por aí. As revista estavam velhas claro, mas não tanto. Tinha Porantim, um jornal favorável à causa indígena publicado pelo CIMI, braço católico missionário entre os índios, uma espécie de jesuítas às avessas, que lutam politicamente mas são contra a evangelização. Meu marido me cobrou logo. -Não vai ler o Porantim não? Mas eu já tinha folheado, e visto que aquela manhã não estava muito indígena, queria mais era ver o dom.

Aí foi demorando demais a coisa. Os expectantes ao nosso lado foram entrando e saindo lépidos. Me agarrei numa Época, entrando bem dentro dela, acho que de medo de que chegasse a nossa vez. O sofá de couro envelhecido, e a imagem de São Cristóvão na frente não me incomodavam. O que diríamos ao Dom? O que estávamos fazendo ali? Será que iríamos com uma visita desfazer todo o trabalho de Lutero, manchando com uma aliança espúria o trabalho de tantos homens de Deus e o sangue de tantos mártires? Eu me senti querendo correr dali e do Dom. Estou me tornando ecumênica? Uma visita como esta vai me ligar irremediavelmente à idolatria de uma maneira que demônios idólatras me perseguirão, tornarão meu evangelho impuro e meu Jesus incapaz de salvar curar e libertar?

Ai, ai, vai chegar nossa vez, a Época velha está muito interessante, esta eu não li, não sabia que esta modelo estava de caso com aquele ator, nem que o político fulano tem uma aliança agora com aquele que ele espinafrava tanto em público.

A mulher solícita de verde se aproximou, e nos adivinhando estranhos naquele ninho, inquietos e quem sabe exalando um pânico mudo, disse: – “Olha era a minha vez agora, mas eu passo pra vocês.” –Obrigado”, dissemos ao mesmo tempo, esperando o momento. Aí passou o Dom cruzando o corredor para o lado do banheiro, sabíamos que na volta ele nos chamaria. Só que os visitantes não paravam de chegar. Chegou mas um homem, todo sujo sentou-se e tinha um rosto de quem decididamente não iria ficar esperando a sua vez como qualquer pessoa comportada, iria entrar de qualquer jeito. Me inquietei com aquilo. Só falta esta agora, este cara só porquê é mendigo tem o rei na barriga, afinal não sou daqui mas não sou nenhum capacho, ele que espere sua vez como todo mundo.

Aí veio o Dom, fazendo como ele sempre tinha feito antes, vindo até a sala de espera e chamando os que estavam na vez. O homem recém-chegado se levantou e começou a falar sem parar, meio gago, meio falando super-errado de uns negócios que estava fazendo, e de como a vida estava dando certo para ele. O dom prestou atenção, lhe ouviu ali mesmo na sala de espera, tratando-o pelo nome, dizendo que bom, depois você vem me contar melhor. Não pareceu irritado, nem com pressa. Tratou-o como um bom camarada, mas também não nos deixou esperando. Nos encaminhou devagar para seu escritório.

Chegou rindo falando sobre o rapaz, de como ele sempre ia ali todo dia falar de sua vida. Sentamos e a conversa fluiu. Falamos da barreira que nos separa, e de como que apesar de todas nossas diferenças ainda cremos no mesmo Deus. Falamos de como estamos convictos de que uma ponte tem que ser construída e de que o Espírito Santo vai andar por ela. O Dom, com olhos cansados nos ouvia admirado como se não esperasse nunca um reconhecimento deste de nossa parte.

Aí abriu a boca e foi falando também de como vê a igreja como responsável pela sociedade de como juntos podemos fazer muita coisa para transforma-la, e de como lamenta pela falta de unidade entre os segmentos do corpo de Cristo. Falou de muitos evangélicos com uma propriedade e um respeito que nós mesmo não temos uns pelos outros, no final olhou sua agenda para marcar um segundo encontro. Nos mostrou a agendinha marcada a lápis, cheia de ações pela sociedade, gritos dos excluídos, uma campanha de moralização do poder político entre outras coisas. O governador tinha ido lá no dia anterior para pedir sua intermediação num problema que envolvia a população indígena e a construção de uma represa que estava secando os rios da reserva e deixando os índios com fome. Com um sorriso triste ele nos contou que o governador tentou lhe vender a idéia de que as represas não causam tanto dano ambiental assim, mas ele o dom, e nós também sabíamos que causava. Neste momento nós três respiramos fundo, num respiro assim de quem não é deste mundo e que quer ir logo pro céu porque não agüenta tanta injustiça.

Pensei na agenda de muitos pastores que conheço. Culto disto, culto daquilo, célula, como se a igreja vivesse fora da terra numa redoma artificial e religiosa. O que eles teriam pra falar com o governador? Pedidos, pedidos de terrenos, telhas, cimento, areia para construção de templos.

O Dom continuou a dizer que queria se encontrar conosco mas que com a agenda deste jeito estava difícil. Disse com voz embargada que se fôssemos fazer algum ato público de pedido de perdão, ele também pediria perdão em nome de toda a intolerância e indisposição da Igreja Católica de tratar com seu braço amputado há 486 anos atrás…

Naquela hora acreditei que existe uma reconciliação possível. Acreditei que o Corpo é um, e que um dia cada um vai prestar conta de suas próprias idolatrias. Para alguns de nós, o dinheiro, grandes templos, nomes, títulos. Para outros imagens, Marias, santos de todos os nomes e cores.

Saímos apertando a mão sólida do dom, que nesta hora não foi o Dom, mas um dom de Deus, do Espírito Santo, um dom humilde e honesto como qualquer Maria e José que conhecemos. E cremos juntos ali que, quem sabe, com fé nossa luta para implantar o reino d´Ele na terra será ainda mais intensa se trabalharmos juntos.